Senador pelo
PDT, o ex-ministro da Educação deu início a uma vida pública voltada ao combate
do analfabetismo e da má qualidade dos colégios brasileiros.
Zero Hora —
Como o senhor define a qualidade da educação brasileira hoje?
Cristovam Buarque — Se a gente compara a educação
brasileira de hoje com a de 30 anos atrás, melhorou. Se compara com o que se
exige hoje da educação, nós pioramos. É como se nós avançássemos ficando para
trás, porque as exigências educacionais crescem mais rapidamente do que a educação
brasileira melhora. Há 30 anos, nem tinha escola para 30% das crianças. Agora,
elas estão na escola, mas em escolas muito deficientes.
ZH — O país
se preocupou primeiro em aumentar o número de matrículas para depois focar na
qualidade. Foi uma estratégia correta?
Cristovam Buarque — Mas esse depois não está acontecendo.
A qualidade não está melhorando com a velocidade que o mundo exige. Até poucos
anos atrás, uma pessoa sem saber ler tinha emprego. Hoje, é difícil ter emprego
sem o Ensino Médio. Recentemente, conversei com um empresário europeu que
deixou de investir em Alagoas porque não tinha mão de obra qualificada, e o
ramo dele era criação de cavalos. Ele precisava de um número de veterinários
que falassem inglês e lessem em inglês que ele não encontrou.
ZH — Quais as
principais razões para esse cenário?
Cristovam Buarque — Duas razões. A primeira é cultural.
Por algum motivo, o povo brasileiro, incluindo você, eu, sendo pobres ou não,
não dá importância à educação. Ninguém é considerado rico no Brasil por ser
culto. Você é considerado rico pela casa, pela conta bancária, pelo tamanho do
carro, mas não pelo grau de cultura e educação. Mesmo quem gasta dinheiro para
estudar não está em busca de cultura, está em busca do emprego que a educação
lhe dá. E a segunda razão é social e política: o Brasil é um país dividido em
duas classes bem separadas. Tudo o que é da parte rica, a gente resolve. O que
é da parte pobre, a gente abandona.
ZH — Foi para
forçar a aproximação dessas duas realidades que o senhor propôs que todo
político fosse obrigado a matricular os filhos em colégio público?
Cristovam Buarque — Não, foi por questão ética. Se a
gente cuida das coisas públicas, não deveria se esconder nas soluções privadas.
Mas, voltando à segunda causa do atraso, que é política, nós melhoramos a
educação dos filhos dos ricos – inclusive usando dinheiro público para isso. Aí
abandonamos a educação dos pobres como abandonamos água, esgoto, transporte,
segurança.
ZH — O
governo aposta no dinheiro do pré-sal para financiar a educação, que deverá
receber o equivalente a 10% do PIB. Esse é o caminho?
Cristovam Buarque — Não, porque não diz como é que terá
de ser investido o dinheiro. Se você jogar dinheiro no quintal de uma escola,
não melhora a educação. Então é preciso dizer como vai gastar o dinheiro,
depois a gente diz de onde vem o dinheiro. Não se fez esse exercício. Em
segundo lugar, o pré-sal é uma hipótese, e pouco provável.
ZH — O senhor
acha arriscado vincular a educação brasileira ao pré-sal?
Cristovam Buarque — Não é arriscado, é absurdo. Veja bem,
é certo reservar o pré-sal para a educação, mas é absurdo vincular a educação
ao pré-sal. Primeiro, porque ninguém sabe se vem esse dinheiro. Segundo,
ninguém sabe quanto é. Terceiro, se vier, vai demorar muito. Com o preço atual
do petróleo, o pré-sal não tem possibilidade de ser explorado. Não compensa. E,
com a crise atual da Petrobras, não vejo como vai se explorar o pré-sal.
ZH — Qual
seria a melhor forma de financiar a educação?
Cristovam Buarque — Definir de onde se tira o dinheiro.
Eu fiz um estudo em que propus 15 fontes de financiamento. Com essas fontes,
nós teríamos dinheiro sobrando.
ZH — Seriam
parcelas de tributos já existentes?
Cristovam Buarque — Por exemplo: o governo gastou R$ 250
bilhões em isenções fiscais. Só isso já resolveria. Provavelmente, a gente não
poderia acabar com toda isenção, tiraria uma parte. Se a gente quiser mesmo
fazer uma revolução, por que não cria uma CPME, do jeito que teve uma CPMF
(extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, que visava a
financiar a saúde), para a educação?
ZH — Mas
haveria aceitação no Brasil a um novo tributo?
Cristovam Buarque — Não, porque não se dá importância à
educação. Outra: do dinheiro que o BNDES investe em Eike Batista e cia., se a
gente pegasse uma parte disso, resolveria a educação. Até agora, o lema
“Brasil, Pátria Educadora” é só um slogan publicitário. Qual foi o gesto
concreto da presidente? Reduziu R$ 7 bilhões do orçamento da educação.
ZH — O país
investe quatro vezes mais dinheiro por aluno na Educação Superior do que na
Educação Fundamental. Por que se criou essa distorção, a maior registrada em
uma pesquisa com 44 países?
Cristovam Buarque — Pela mesma razão que eu disse que o
Brasil é um país dividido em dois. No que é da camada de cima, a gente investe.
No que é da camada de baixo, a gente não investe. Ensino Superior é da camada
de cima, Educação Básica é da camada de baixo. Então, não tem dinheiro para
baixo, só para cima.
ZH — O senhor
propôs a federalização da Educação Básica. Seria uma forma de combater essa
distorção?
Cristovam Buarque — Não há outra maneira de combater a
dispersão se não for uma questão nacional. Se deixar como assunto municipal,
não tem como ser equilibrado ao longo do Brasil, porque os municípios são muito
pobres e desiguais.
ZH — Países
como a Finlândia investem na formação e na seleção dos melhores professores.
Qual a melhor política para o Brasil nessa área?
Cristovam Buarque — A primeira condição, mas não
suficiente, é o salário. Se você paga bem, você tem condição de atrair jovens
melhores, mais preparados para aquela profissão. A segunda é, já que vai pagar
bem, escolher bem os professores. O que significa não só o concurso, mas a
prática, para ver se essa pessoa realmente tem vocação e tem preparo. Uma
terceira é avaliação periódica do professor.
ZH — Isso tem
relação com outro tema polêmico que é a meritocracia. É boa ideia vincular
desempenho a prêmio financeiro?
Cristovam Buarque — Todos nós reconhecemos aquilo que a
gente gosta e respeita. O professor tem de ser melhor reconhecido, e para isso
temos de reconhecer a diferença entre um e outro. Tem de ter instrumentos que
valorizem os melhores. Uma das maneiras é a remuneração, sim. É preciso que
todos ganhem muito bem, e todos trabalhem bem. Os que não trabalham bem não têm
de ser contratados. Têm de perder o emprego, ser substituídos. Entre os que
trabalham bem, a gente tem de dar reconhecimento. Pode ser medalha, prêmio,
salário. Não sou contra, só não gosto é da mediocracia. Estamos temendo a
meritocracia, e estamos caindo em uma mediocracia. Quando a gente não reconhece
os melhores, a gente reconhece os medíocres.
ZH — O piso
nacional do magistério é capaz de mudar a situação dos professores?
Cristovam Buarque — Não. O piso foi uma lei minha,
gostaria até que fosse chamada de Lei Buarque. O piso é o ponto de partida, mas
no Brasil é muito pequeno, e ainda tem Estado e município que não paga. Temos
de ter salário médio satisfatório, com carreira que defina piso mínimo bom.
Calculo que, para atrair bons jovens para o magistério, devemos pagar um
salário médio de R$ 9 mil por mês. E aí não há município que possa pagar. Por
isso, defendo a adoção da educação das crianças pelo governo federal.
ZH — Mas o
senhor chegou a fazer uma projeção do impacto que representaria um salário
desses?
Cristovam Buarque — Claro. Primeiro, isso não seria feito
de repente. Substituiríamos o sistema que está aí por um sistema federal, aos poucos,
em 20 anos. Pagando R$ 9 mil para um professor, ao fim de 20 anos, se o PIB
crescer 2% ao ano, que é uma taxa pequena na história do Brasil, embora seja
maior do que a do ano passado e deste, vai precisar só de 6,4% do PIB para
todos os gastos com educação de base. Se somar um bom ensino pré-escolar,
dobrar o dinheiro das universidades e fizer um grande programa educacional para
as massas, vai precisar de 9,5%. Não chega aos 10%. A lei já obriga a gastar
isso.
ZH — A
questão é como gastar?
Cristovam Buarque — Não, a questão é gastar mesmo o que a
lei manda, o que eu temo que não vai ser cumprido. Sabe por quê? Porque o PIB
não tem dinheiro. Não existe um lugar chamado PIB. Existe um lugar chamado
conta bancária. Existe o cofre das empresas ou do governo, mas não tem um cofre
onde esteja guardado o PIB. É uma abstração. Foi colocado o PIB exatamente para
não cumprir, porque se fosse colocado que iria gastar 10% da sua renda, você
não iria querer. Se fosse 10% dos impostos atuais, o governo não iria querer.
Aí disseram “vamos botar o PIB, porque daí ninguém sabe de onde vai sair”.
ZH — Uma das
críticas que se faz à formação dos professores é de que é muito teórica. O
senhor concorda?
Cristovam Buarque — Não se ensina o professor a ensinar
no Brasil. A gente ensina técnicas pedagógicas, filosofia, e o aluno entra na
faculdade sem querer ir para a sala de aula. Ele quer ser teórico, porque a
sala de aula não paga bem, não dá condições. Se você pesquisar nos nossos
cursos de licenciatura e pedagogia, uma alta porcentagem dos alunos não quer ir
para a sala de aula. Cai na formação teórica para ver se consegue lugar na
universidade como professor.
ZH — E por
que é tão difícil mudar o perfil dos cursos de formação?
Cristovam Buarque — Porque a Educação Básica não tem
valor. O que tem valor é o Ensino Superior. Então os professores do Ensino
Superior dominam, e a universidade usa a educação de base como pretexto. É o
contrário do que deveria ser. A gente deveria usar a universidade para resolver
o problema da educação de base. Não fazemos isso porque há uma ditadura da
universidade sobre o setor educacional.
ZH —O senhor
não é cobrado por seus colegas da academia por dizer isso?
Cristovam Buarque — Claro, muito. Mas eles sabem que é
verdade, só não querem reconhecer. Quer ver um exemplo? O Enem já existe há
algum tempo. Ninguém dava importância até servir de vestibular para a
universidade. Quando era para avaliar a educação de base, ninguém se preocupava
em saber a nota do aluno. Outra coisa: as pessoas não percebem que, pior do que
as baixas notas, é o fato de que quem faz o Enem são os melhores. Os 13 milhões
de analfabetos não fazem o Enem, e 60% dos alunos não terminam o Ensino Médio e
não têm direito de fazer o Enem. Nós nos surpreendemos com 500 mil que tiraram
nota zero (na redação), mas ninguém se surpreende que há outros 13 milhões que
tirariam zero porque não sabem ler.
ZH — O senhor
criou o Bolsa-Escola para atender esse tipo de problema. O Bolsa-Família cumpre
bem esse papel hoje?
Cristovam Buarque — Não, porque deixou de ser “escola” e
passou a ser “família”.
ZH — Mas
mantém a obrigatoriedade de os filhos frequentarem a escola...
Cristovam Buarque — Mas não se pratica isso, e não se
melhorou a escola.
ZH — Deveria
ter se mantido separado do Bolsa-Família um programa específico para a
educação?
Cristovam Buarque — Exatamente. O Lula cometeu erros em
relação ao Bolsa-Família do ponto de vista educacional e do interesse nacional,
e acertos do ponto de vista eleitoral. O primeiro erro foi mudar o nome. Quando
uma mãe recebe Bolsa-Escola, ela pensa: “Eu recebo esse dinheiro porque meu
filho vai à escola”. Quando recebe Bolsa-Família, ela pensa: “Eu recebo esse
dinheiro porque a minha família é pobre”. Segundo erro: tirou o programa do
Ministério da Educação e levou para o Ministério da Assistência Social. A
ministra já disse “eu não vou cortar bolsa de uma família pobre porque o filho
faltou aula. Não posso deixar essa família sem comida”. Eu também acho, daí vem
o terceiro erro: misturou o Bolsa-Escola com Vale-Alimentação, Vale-Gás e
outras coisas.
ZH — E quais
são os acertos eleitorais?
Cristovam Buarque — Quando a família era obrigada a algo,
ela não se sentia devedora do governo, estava cumprindo um papel. O ProUni foi
criado, do ponto de vista teórico, quando eu era ministro. Mandei o projeto
para a Casa Civil e ficou engavetado por um ano. Quando saiu da gaveta, mudaram
o nome de Programa de Apoio ao Estudante para ProUni. No meu programa, o
beneficiado teria de ser alfabetizador de adultos durante seis horas por
semana, ao longo de um semestre. O Lula tirou isso. Se o menino que recebe
bolsa do ProUni fosse alfabetizador de adultos, ele iria sentir que estava
dando a sua contribuição, e a bolsa seria uma remuneração. Não seria um
presente, então ele não se sentiria devedor do governo. A família não se sentia
devedora do Bolsa-Escola, mas se sente devedora do Bolsa-Família. O nome também
foi um acerto eleitoral, porque o nome “família” sensibiliza mais do que
“escola”.
ZH — O senhor
foi ministro da Educação no governo Lula, mas acabou demitido por telefone após
um ano, em 2004. Ficou ressentido?
Cristovam Buarque — Eu me ressinto porque, primeiro,
estava em uma viagem oficial indo me encontrar com o presidente. As pessoas não
sabem disso. Eu estava na comitiva presidencial para uma visita à Índia. Só que
tive de lançar um livro em Portugal e viajei um dia antes. Saí do gabinete do
Lula para o aeroporto. Minha última palavra com o Lula foi: “Nos vemos em Nova
Délhi”. É um bom título para um livro. Segundo, eu me ressinto porque eu queria
ficar na história do Brasil como o político que erradicou o analfabetismo e
iniciou a revolução educacional. Fiquei frustrado.
ZH — O senhor
foi criticado por ter um perfil mais teórico do que de gestor...
Cristovam Buarque — Veja como isso não resiste. Eu fiz o
Bolsa-Escola, não é coisa de teórico. Fui governador quatro anos, fui reitor
quatro anos. Até hoje, as pessoas se lembram das coisas que eu fiz. Onde está o
teórico?
ZH — Não
ficou marcado ao cobrar mais dinheiro para a educação e sugerir protestos
contra o próprio governo como uma marcha de estudantes e um apitaço na
Esplanada?
Cristovam Buarque — Claro. Começou logo no início, quando
disse no Jornal Nacional que o Brasil não precisava do programa Fome Zero,
bastava aumentar o valor do Bolsa-Escola e o número de beneficiados. O Lula não
gostava do Bolsa-Escola. Quando levei essa ideia para ele em 1990, foi recusada
porque o PT dizia que era uma medida compensatória e tinha era de criar emprego
e dar bons salários. Nunca perceberam que não tem como ter emprego e salário
sem educação. Sem educação, o trabalhador vai receber bolsa. Depois, porque o
Fernando Henrique pegou (o programa), aí o Lula ficou com raiva.
ZH — O senhor
era pressionado a não falar essas coisas?
Cristovam Buarque — O Lula me ligou. Quando falei para os
jovens se manifestarem, ele ligou e disse: “Pô, Cristovam, não dá para falar
isso...”. Mas confesso que não esperava naquele momento (a demissão), porque
havia feito o Lula ganhar um prêmio da Unesco por um programa de alfabetização,
a ideia da federalização estava começando em 29 cidades.
ZH — O seu
nome é sempre relacionado à educação. O que o senhor considera seu maior legado
até o momento?
Cristovam Buarque — Coloquei a educação na pauta graças à
minha candidatura a presidente. Durante dois meses, se falou em educação todos
os dias. Eu era criticado por ter uma nota só. Mas, se eu tivesse duas ou três
notas, ninguém iria lembrar. O importante, para mim, foi colocar a educação
como tema, o que não existia, não entrava.
ZH — A
despeito de todos os problemas, o senhor ainda acredita que o Brasil pode virar
um país de elite na educação?
Cristovam Buarque — Se começar esse trabalho que eu
defendo através do processo de federalização e construindo a escola ideal como
se deseja, em 20, 30 anos, o Brasil estaria entre os primeiros países. Se
continuar como está, mesmo melhorando, a gente fica para trás porque os outros
países estão melhorando mais do que nós. Turquia, Colômbia, Peru, Chile estão
melhorando mais do que nós. Nós estamos ficando para trás.
Por: Marcelo Gonzatto
01/03/2015 - 10h06min
Na foto, O Senador Cristóvão Buarque e a Master Coach
Wannessa Lima (Arquivo do Jornal Gazeta Do Estado
Pernambuco)
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